segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A cidade e suas perspectivas civilizatórias


A cidade ocupada e modificada pelas intervenções humanas e constituída também por ordens imaginárias revela as figurações das identidades que demarcam as ruas e também os rompimentos que introduzem a desordem das experiências e dos relatos.
Intervenções desencadeadoras de ações intencionais que transformam homens e mulheres em personagens, sujeitos que se apropriam dos espaços públicos – com eles interagindo ora de forma harmônica e equilibrada, ora de maneira conflituosa e insidiosa, na tentativa de converter os espaços em “lugares meus” (Borelli e Rocha, apud Pryston, 2005).

O tecido da cidade é produzido pelos movimentos humanos, através dos fatos sociais, territoriais e culturais.

Trata-se, de certa forma, de uma cidade cindida em cenários, assim como, cindida está a sociedade da qual ela é parte constitutiva; sociedade transformada e distanciada da ideia clássica que pressupõe uma “cena única e nacional”, em que as comunidades se vinculavam “a um território, a uma língua e a certas tradições” (Sarlo, apud Pryston, 2003, p.56-57)

Assim como se alteram as sociedades e as subjetividades, as cidades se transfiguram. Nessa cidade disseminada vive-se a tensão. “Hoje imaginamos o que significa ser sujeitos não apenas de nossa cultura de origem, mas também de uma variedade de repertórios simbólicos e modelos de comportamento. Podemos cruzá-los e combiná-los” (Canclini, apud Pryston, 2004, p.161). E nesse sentido desvendar como a cidade é imaginada por seus habitantes é perguntar-se sobre qual o sentido que eles atribuem à cidade em que vivem a demanda
“O sentido da cidade se constitui no que a cidade dá e no que não dá, no que os sujeitos podem fazer com sua vida em meio às determinações do habitat e o que imaginam sobre si e sobre os outros para suturar as falhas, as faltas, os desenganos com que as estruturas e interações urbanas respondem a suas necessidades e desejos (Canclini, 1995, p.91).

Renato Gomes comenta na obra “Todas as cidades, a cidade” sobre a dificuldade de entender o código da cidade, devido a sua constante transformação. Ele define a cidade como “linguagem dobrada, em busca de orientação”. No livro “Espécies de espaço”, o autor reflete sobre a cidade como metrópole, um fenômeno da modernidade em que “a arena cultural indica um campo de batalha simbólico (das artes e das indústrias da cultura) que, na sua polifonia, faz da cidade o palco de uma guerra de relatos” (GOMES, 2008, p.181).

E nesse campo de disputas, dentro ou fora da lei a cidade é feita por pessoas que consomem e, quem fica a margem, é considerado um monstro. Rubem Fonseca no conto “O outro”, por exemplo, não pensa na sociedade polarizada de classes, mostrando como os favorecidos e os desfavorecidos criminalizam a cidade. O autor fala de um lugar de culpa com as ambigüidades que produzem a violência. O intelectual tem uma crise por militar pelos pobres e não pertencer à classe deles. Além disso, reflete sobre a invisibilidade existente nos grandes centros, tema tratado em “A Ralé Brasileira” por Jessé Souza.

O ponto principal para que essa ideologia funcione é conseguir separar o indivíduo da sociedade. Nesse sentido, toda deter­minação social que constrói indivíduos fadados ao sucesso ou ao fracasso tem que ser cuidadosamente silenciada. É isso 'que permite que se possa culpar os pobres pelo próprio fracasso. É também o mesmo fato que faz com que todo o processo familiar, privado, invisível e silencioso, que incute no pequeno privilegiado as predisposições e a "economia moral" — o conjunto de predis­posições que explicam o comportamento prático de cada um de nós — que leva ao sucesso — disciplina, autocontrole, habilidades sociais etc. —, possa ser "esquecido". O "esquecimento" do social no individual é o que permite a celebração do mérito individual, que em última análise justifica e legitima todo tipo de privilégio em condições modernas. É esse mesmo "esqueci­mento", por outro lado, que permite atribuir "culpa" individual àqueles "azarados" que nasceram em famílias erradas, as quais só reproduzem, em sua imensa maioria, a própria precariedade. Como, no entanto, o social, também nesse caso, é desvinculado do individual, o indivíduo fracassado não é discriminado e humilhado cotidianamente como mero "azarado", mas como alguém que, por preguiça, inépcia ou maldade, por "culpa", portanto, "escolheu" o fracasso (SOUZA, 2009, p.42). 

A cidade acaba por perder o seu sentido porque ela nega essa diferença, tentando reduzir a alteridade para não produzir identidade. Para esmiuçarmos melhor tais questões nos apoiamos nas reflexões de Janice Caiafa que parte do princípio de que a marca das cidades é a circulação e a dispersão. A autora comenta que as cidades crescem concentrando e misturando seus habitantes, criando problemas de circulação. As formas como as diferentes cidades resolvem esses problemas é que vão caracterizá-las e definir muito da vida social nesses contextos. “A circulação tornava possível a ocupação do espaço público, produzindo a cidade como grande centro que atraía uma população diversa em sua composição e que em algum grau se misturava num espaço partilhado” (CAIAFA, 2007, p.31).

Caiafa também apresenta a sua interpretação de Guattari sobre a função subjetiva da cidade. Tal função é gerada pela falta de coletividade no meio ocupável com a inviabilidade de territórios existenciais – éticos e estéticos.
Os encontros serão entre iguais e conhecidos e vão se restringir a meios controlados e previstos, como por exemplos os clubes, as igrejas, os grupos de auto-ajuda, ou ainda os contatos virtuais por televisão ou computador. Produz-se uma subjetividade constantemente à mercê das semióticas modelizadoras dominantes e, portanto, em consonância com a subjetividade capitalista. A evitação da alteridade é fatal para a potência criadora da subjetividade (Caiafa, 2007, p.39).

Para Caiafa (2007) o desejo de vínculo com a cidade que não é apenas consumida e se dá pela capacidade de transformação, criação de novos caminhos subjetivos. Guattari afirma que as “engrenagens urbanas” nos interpelam, ativando afetos, modelizando focos subjetivos.  As cidades se definem em grande parte pelos processos subjetivos que deflagram. “A aventura própria das cidades envolve precisamente a produção de heterogeneidade, quando a cidade chama à exterioridade, dispersa os focos de identidade e as recorrências do familiar [...]” (Caiafa, 2007, p.39).

E, portanto, com a privatização dos subúrbios e a exclusão, é na circulação urbana que Caiafa (2007) encontra a solução enquanto grande operador de alteridade, heterogeneidade e segregação para composições subjetivas singulares.  E o setor público tem um papel definitivo, porque pode ser produtor de espaços coletivos, em que possa “desatar o laço que ata a cidade à empresa, figura central das mutações contemporâneas do capitalismo” (Caiafa, 2007, p.40).
Rafaella Prata Rabello: Jornalista pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora e Graduanda do 6º período de Letras na Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista Pibic/CNPq no projeto Cidade e memória: a construção da identidade urbana pela narrativa audiovisual.

Por Rafaella Prata.


Referências bibliográficas: 
CAIAFA, Janice. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
GOMES, Renato Cordeiro; MARGATO, Izabel (org.). Espécies de espaço: territorialidades, literatura, mídia. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2008.
PRYSTON, Angela; CUNHA, Paulo (orgs). Ecos urbanos: a cidade e suas articulações midiáticas. Porto Alegre: Sulina, 2008.
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: Quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 15-71.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Parâmetros de qualidade para o telejornalismo público: uma análise da TV Brasil



Apesar de a Constituição brasileira ter um capítulo sobre Comunicação Social e garantir o direito à livre expressão e à comunicação, observa-se que, de fato, ainda é pouco o que se tem realizado no sentido de possibilitar uma maior democratização da produção de conteúdos na televisão do país.  O engajamento da sociedade civil, que resultou na I Conferência Nacional de Comunicação, em dezembro de 2009, onde foram sugeridas mais de 600 propostas que mudassem a comunicação no Brasil não foi capaz de alavancar as mudanças desejadas.

Apesar de legalmente instituída pela Constituição de 1988, a comunicação pública não foi de fato criteriosamente definida, dando margem a uma espécie de contaminação, que faz com que muitas das emissoras ditas públicas estejam perigosamente marcadas por procedimentos típicos de emissoras comerciais, por exemplo.

As primeiras televisões públicas que surgiram no Brasil, no final dos anos 60 e início dos anos 70, estavam ligadas de forma muito direta ao poder estatal, seja por ligações com os governos estaduais, ou através do Ministério da Educação, dessa forma, dificilmente, poderiam representar a dinâmica social com distanciamento e de forma democrática.

Durante muito tempo, a população em geral considerou que a missão das TVs públicas seria aquela da alfabetização massiva, expressa, por exemplo, pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral).

A relação entre as TVs educativas e o sistema político partidário é comprometedora quando se trata das concessões que foram efetuadas ao longo dos anos, até mesmo depois da democratização do país.  Um dos empresários de radiodifusão que esteve à frente da TVE de Juiz de Fora, Minas Gerais, de 1981 a 2000, Domingos Frias, brinca ao se referir ao sistema: “Quando saía a publicação no Diário Oficial, na página do Ministério das Comunicações: ‘edital de concorrência para o canal 10 em Juiz de Fora’, lia-se: ‘é de tal’, porque quem pedia a abertura já era carta marcada, líquido e certo para ganhar” (apud MUSSE; RODRIGUES, 2012, p. 103).

A criação da EBC – Empresa Brasil de Comunicação - é o resultado de um emaranhado jurídico que, nos anos 90, embalado pelos horizontes neoliberais, possibilitaram que sucessivas lacunas ou novas interpretações legais permitissem que muitas pequenas emissoras, sem estrutura e sem compromisso público, se transformassem em geradoras.

De qualquer forma, para atender os preceitos ditados anteriormente pela Constituição Federal, de complementaridade entre os sistemas estatal, privado e público, e como resultado da mobilização que levou à realização do Fórum da TV Pública, foi criada, em 2007, a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), que inclui a TV Brasil.

Mas a fragilidade para manutenção dos canais locais faz com que eles tenham grande dependência do que é produzido pela TV Brasil ou pelas emissoras estaduais, como é o caso da Rede Minas, em Minas Gerais. A TVE, canal 12, de Juiz de Fora, que foi a primeira emissora educativa não governamental do país, tem uma pequena grade de programação local, muitos programas reprisados da TV Cultura, TV Brasil e Rede Minas, algumas atrações locais produzidas através de projetos de professores da Universidade Federal de Juiz de Fora, mas também veicula programas da Igreja Universal do Reino de Deus e atrações que podem ser incluídas no gênero de colunismo social, o que caracterizaria uma privatização do sistema público.

A televisão brasileira como principal meio conformador do imaginário nacional opera um empobrecimento das múltiplas identidades do país ao centralizar a produção de seus programas no eixo Rio-São Paulo. Os danos causados ao país pela existência de praticamente um modelo único de televisão, moldado de acordo com a lógica comercial, e cujo sucesso de audiência dificulta a renovação da imagem televisual, é ainda um dos grandes desafios à real democratização do país.

Autores: MUSSE, Christina Ferraz; COUTINHO, Iluska. (resumo do texto apresentado no Colóquio “Qu’est-cequ’unetélévision de qualité?” – Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 – 12 a 14 de setembro de 2012)

Referências:
Empresa Brasileira de Comunicação (EBC):  http://memoria.ebc.com.br/portal/empresa. Acesso em 15/07/2012.
MOTA, Regina.  O programa “Abertura” e a épica de Gláuber Rocha.  In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco. História da televisão no Brasil – do início aos dias de hoje.  São Paulo: Contexto, 2010. p.137/155.
MUSSE, Christina Ferraz; RODRIGUES, Cristiano José.  Memórias possíveis: personagens da televisão em Juiz de Fora.  São Paulo: Nankin; Juiz de Fora: Funalfa, 2012.
______; PERNISA, Mila.  Telejornalimo e diversidade cultural: a tv pública e a construção de identidades. In: VIZEU, Alfredo; PORCELLO, Flávio; COUTINHO, Iluska.  60 anos de telejornalismo no Brasil: história, análise e crítica.  Florianópolis: Insular, 2010.p.179/195.
RUBIM, Antonio Albino Canelas.  Políticas culturais, diversidade cultural e realidades regionais. In: CABALLERO, Francisco Sierraet al (orgs.). Políticas de comunicação eda cultura: contribuições acadêmicas e intervenção social. V Colóquio Brasil-Espanha de Ciências da Comunicação.  Brasília: Casa das Musas, São Paulo: Intercom, 2010. p. 227/231.
STEVANIM, Luiz Felipe Ferreira.  Uma política do ver: negociações de sentido e práticas em torno do público nas políticas brasileiras de televisão.  Tese de doutorado.  Rio de Janeiro: UFRJ, 2011.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Curso de Cinema


Cartaz distribuído na época para divulgar as inscrições
Dentre os vários eventos promovidos pelo CEC - Centro de Estudos Cinematográficos de Juiz de Fora durante seu período de funcionamento (1957-1977) destaca-se o Curso de Cinema realizado em 1967, que se tornou referência nacional por ser o maior curso oferecido por um cineclube no país.

O curso planejado com o apoio da Reitoria da Universidade Federal de Juiz de Fora, do CEC - Centro de Estudos Cinematográficos de Belo Horizonte[1] e da Galeria de Arte Celina[2] fazia uma retrospectiva sobre a história do cinema desde o cinema mudo até os importantes movimentos existentes na Europa como o Neorealismo Italiano e o Expressionismo Alemão.

Ao longo do curso foram exibidos mais de 150 filmes, sendo que muitos raros como: Lousiana Story, de Flaherty; Aurora, de Murnau; a Turba, de King Vidor; Une Partie de Campagne, de Jean Renoir; Napoleão, de Gance; Ladrões de Bicicleta, de Zavattini e de Sica; afora filmes expressionistas alemães, soviéticos e franceses. Além dos filmes, foram projetados cerca de 1.400 slides sobre a história do cinema mundial.

Em média, 40 alunos participaram das atividades. Além desses, estiveram presentes importantes cineastas e críticos de cinema: Murílio Hingel, Nélson Pereira dos Santos, Maurício Gomes Leite, Paulo Emílio de Salles, Glauber Rocha, entre outros. Segundo arquivo do jornal Diário de Minas, de 22 de fevereiro de 1967:

Curso na Manchester

Dentro ou fora de currículos universitários é o melhor curso de cinema já dado no país inteiro este que se realiza, presentemente em Juiz de Fora. Esta impressão aliás não é nossa, vários dos professores(RJ, SP e BH) que por lá já passaram dizem o mesmo gravando sua opinião no livro de promoções da Galeria de Arte Celina. (DIÁRIO DE MINAS, 1967)

Haydêe Sant’Ana Arantes Graduada em Comunicação Social/ Jornalismo pela UFJF. Ex-bolsista de Iniciação Científica. Mestranda do PPGCOM-UFJF. Integrante do projeto de pesquisa: “Cidade e memória: a construção da identidade urbana pela narrativa audiovisual.


[1] CEC-BH, conhecido como CEC Minas foi fundado em 15 de setembro de 1951, na capital mineira, por Cyro Siqueira, Jacques Brandão e Fritz Teixeira de Salles.

[2] A Galeria de Arte Celina foi fundada em 1965 pela família Bracher e assumiu um importante papel na vida cultural em Juiz de Fora.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

A memória e a reescrita da história


A nossa memória é seletiva. Por uma série de fatores físicos e mentais, não lembramos de tudo o que nos aconteceu, mas somente de uma parcela dos acontecimentos. Até para nossa própria sobrevivência, não podemos lembrar de tudo, senão seríamos como o personagem Funes, o memorioso, de Borges[1], que ao se lembrar de tudo, vive para lembrar e não para viver.  Lembrar é também uma forma de esquecer. Primo Levi[2], em sua obra “Os Afogados e os sobreviventes” aponta que uma das formas para esquecer as atrocidades cometidas pelos nazistas nos campos de extermínio é lembrar e relatar o que se passou e desta forma evitar que novas experiências de extermínio acontecem. Primo Levi alerta para o desejo do esquecimento de muitos dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas, no que ele denomina de memória da ofensa. No entanto, ele afirma que esta memória está sempre ancorada no contexto dos fatos e não é cópia fiel dos mesmos, pois “a memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falaz”. Nesse caso, a memória de algum fato é sempre incompleta.

No entanto, sabemos que uma coisa é uma falha na memória, seja ela pessoal ou coletiva, e outra coisa é uma tentativa de reescrita da história, de forma a distorcer os fatos acontecidos. Levi relata a preocupação dos nazistas em destruir as câmaras de gás e os fornos crematórios no outono de 1944 como forma de apagar a memória, destruindo as provas do extermínio. Segundo Levi, essa “guerra contra a memória” promovida pelo Terceiro Reich foi perdida não somente pelos vestígios dos campos que restaram, mas também graças aos testemunhos dos sobreviventes. Conforme nos alerta Todorov[3], essa atitude também está presente na destruição de monumentos astecas que os espanhóis promoveram nas colônias latino-americanas como forma de suprimir a grandeza dos vencidos. A essa atitude Todorov dá o nome de supressão da memória. Ou seja, tentativa de suprimir a memória do que aconteceu como forma de apresentar outra realidade. Nesse caso, a memória é sempre vista como um inimigo nos regimes totalitários, nos quais o esquecimento é sempre providencial.

Presenciamos um exemplo de uma tentativa de reescrita da história no Brasil muito recentemente. Em julho deste ano, fui ao Rio de Janeiro para uma reunião com minha orientadora e para apresentar um paper no Encontro Nacional de História Oral. Entre um compromisso e outro almocei num restaurante do centro do Rio. Ao chegar ao restaurante verifiquei que estava passando uma matéria no Jornal Hoje sobre a morte de um bispo. O som da TV estava desligado e na tela apareciam as legendas do closed caption. Ao ver a matéria a partir da metade, pensei em se tratar de algum bispo ligado aos movimentos eclesiais de base ou à Teologia da Libertação, devido ao conteúdo apresentado pelo jornalista. Qual foi a minha surpresa ao descobrir que se tratava da morte do Cardel Dom Eugênio Salles. Fiquei um pouco preocupada, pensando que estava com problemas de memória, pois me lembrava de histórias sobre o Cardeal, ligando-o aos militares e não aos opositores do regime militar, tal como foi retratado na matéria. Fui salva pelo professor José Bessa Freire[4] que publicou uma crônica sobre o assunto, desnudando a tentativa de transformar o Cardeal em um bispo de esquerda. Em sua crônica “Um Cardeal sem passado”, prof. Bessa traça um paralelo sobre o episódio da morte de Dom Eugênio Salles e filme “Uma cidade sem passado” de Michael Verhoven sobre uma cidade alemã que esconde um passado nazista, transformando os antigos cúmplices da opressão em heróis da resistência. Bessa aponta “como o poder manipula as versões sobre a história, promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa despudoradamente novas lembranças e usa a memória, assim construída, como um instrumento de controle e coerção”. Ao ler a crônica do professor Bessa, fiquei ao mesmo tempo aliviada e preocupada. Aliviada por saber que não estou com problemas de memória e preocupada em ver que mesmo nos dias de hoje, a reescrita da história continuam acontecendo e, por isso, é preciso sempre estar alerta para esse tipo de distorção da memória.

Rosali Henriques é mestre em Museologia, doutoranda em Memória Social pela Unirio - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.



[1] No conto ‘Funes, o memorioso’, o escritor argentino Jorge Luís Borges conta a história de um homem, que após uma queda de um cavalo passa a lembrar de todos os detalhes da sua vida, sem esquecer nenhum pormenor. Esta situação leva a um esgotamento de Funes, pois ele não consegue descansar a memória. BORGES, Jorge Luis.  Funes, o memorioso. In: BORGES. Obras completas, v. 1.  São Paulo: Globo, 2000. Ficções, p. 539-546.

[2] LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades.  2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004

[3] TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Madrid: Paidós, 2000.

[4] BESSA FREIRE, José. Um cardeal sem passado. http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=989. Leia também crônica de Hildegard Angel sobre o assunto: http://noticias.r7.com/blogs/hildegard-angel/2012/07/10/dom-eugenio-salles-otima-relacao-com-os-jornais-antes-da-morte-e-depois-dela/

terça-feira, 2 de outubro de 2012

A integração da cultura e da tecnologia na era da sustentabilidade: um estudo de caso

Raruza Keara Teixeira Gonçalves1
Wanessa Dose Bittar2 


Diferentemente do contexto “guerra pelas estrelas”, nos anos 60, em que a tecnologia parecia algo distante dos indivíduos comuns ou apenas parte de projetos políticos-militares e científicos do período, a segunda década do século XXI acena para uma inversão nesse quadro, visto que a tecnologia e a cultura humana passam a ser compreendidas como indissociáveis. Nos últimos cinquenta anos, percebe-se uma aceleração do tempo, uma ideia de ruptura entre as experiências do velho e do novo, em que a dimensão do presente parece tudo tragar. O movimento grandioso de transição entre as derivas eletrônicas para às das mídias digitais, filhas da pós-modernidade, deflagrou um sentimento ora de temor, ora de supra-valorização de nossa condição de seres da técnica.

Lucia Santaella, em Cultura e artes do pós-humano, explica que esse fenômeno nada mais é que uma passagem de nossa evolução enquanto Homo socius3. Nesse sentido, disponível para ser revisitado, o passado apresenta que “depois da fala, vieram as escritas e todas as máquinas para a produção técnica de imagens, sons, audiovisuais e, atualmente, da hipermídia junto com os avanços das simulações computacionais na realidade virtual, robótica e vida artificial” 4.E esses rastros5 de nós mesmos indicam que para além da diferenciação entre tempos e espaços, a sensibilidade e o prazer estético estão presentes em nossos discursos e em ações comunicativas distintas, que se expressam em “tipografia, texturas, cores, imagens, signos e linguagens” 6. De forma que ao projetar a subjetividade do indivíduo ao alcance do social tem-se a forma para operar os muitos cruzamentos entre as possibilidades humanas e o processo tecnológico. A valorização dos novos ambientes socioculturais e a necessidade de medidas, que se comprometam com sustentabilidade e o desenvolvimento social, são pontos afins de nosso projeto que busca estabelecer a relação entre capital humano e cultural e a implementação de uma tecnologia social.

A matéria “Projeto de SP visa reutilizar retalhos de tecido para evitar desperdício” 7, de Fábio Turci, veiculada no Jornal Nacional do dia nove de julho e ainda disponível no site do telejornal, oferta uma questão relevante quanto ao uso de resíduos na criação de novos artefatos de consumo humano, no momento, em que se vislumbra um novo pensamento em direção ao impacto das ações dos indivíduos nomeio ambiente. Alguns dados dessa notícia nos chamam a atenção por nos apresentarem como a avalanche de retalhos de tecidos dispensados dia-adia pelas fábricas têxteis e confecções de roupas em todo o Brasil, geram um ciclo viciado no quesito do diga não a sustentabilidade. Isto porque, de acordo com os números apresentados pelo o jornal audiovisual mais tradicional do país, só em 2011, o Brasil importou 13 mil toneladas de retalhos, vindos principalmente de países europeus. Fato discrepante, visto que o país produziu, no mesmo ano, 175 mil toneladas, conseguindo reaproveitar desse montante apenas 36 mil na produção de barbantes, mantas e novas peças de roupas e fios. É fato, que essa questão do desperdício nos leva além de uma resolução simplificadora, afinal, ela depende de um esforço conjunto, que repense as tecnologias sociais, a iniciativa de órgãos públicos e privados e de meros mortais, que consomem e produzem lixo diariamente. De tal forma, que talvez a maneira como nos relacionamos com o residual, necessite não só de um novo olhar sobre o que é lixo, mas sim na forma de pensar, de criar, “de ser e fazer cultura a partir dele”. Ser cultura em prol do aproveitamento de resíduos é mais que forjar medidas sustentáveis, a partir da disseminação de sacolas ecológicas ou de práticas de reconhecimento do lixo em orgânico ou não por meio de tamboretes multicoloridos. Já que, essas medidas só poderão se efetivar como disciplinares na questão ambiental, se de fato conseguirem transpor as situações de descartar o lixo para as situações que envolvam o não produzir o lixo ou reaproveitamento do mesmo. A ideia de um consumo sustentável está imbricada nessas prerrogativas. Por isso, para ser a cultura do sustentável, é necessário fazer cultura através do que nos parece improvável, diminuto e escasso, é lançar mão de nossas possibilidades criativas a fim de reinventar o descartável, o residual.

O conceito do projeto8 foi elaborado a partir dessas postulações. Por meio da apropriação de restos de tecidos, lãs, couros, miçangas, fitas de cetim, correntes de metal e linhas, criou-se uma coleção de acessórios de moda. Sendo utilizada a técnica do crochê, ponto leque e ponto duplo com utilização de restos de materiais usados na confecção de roupas e em bijuterias em geral. Esta criação tem como prioridade ser uma cadeia produtiva sustentável, assim, tudo o que foi utilizado na confecção de nossa bolsa e cinto, peças maiores, foi também destinado à confecção dos acessórios de moda propostos. De forma a não descartar nenhum resíduo por menor que fosse sua dimensão em comprimento e largura. Reduziu-se a possibilidade de gerar lixo, incorporando à base estrutural dos acessórios, feita em crochê, todos os pequenos pedaços de tecido, lã e fitas que sobraram. No caso do colar, que tem a base circular em plástico, encapada também com crochê, buscou-se mais elementos têxteis, como restos de tecidos e pedaços de lãs maiores. Como em um retrato da bagunçada caixinha de aviamentos de vovós espalhadas por Minas Gerais e em tantos outros cantos do mundo, o trabalho busca criar a sensação de multicores e texturas, encobrindo, de certa forma a base onde se deposita os residuais. Além disso, uniu-se a característica artesanal à possibilidade de manutenção de uma produção nesse sentido, visto que reaproveita-se resíduos, como também utiliza-se de materiais disponíveis no mercado de aviamentos em geral. Portanto, o trabalho une artesanato e sustentabilidade ambiental e cultural à produção industrial, o que nos garante a viabilidade econômica dessas criações. Adota-se, então, a ideia central de Peter Drucker, “o equilíbrio de uma sociedade está em sua capacidade de compatibilizar tradição com modernidade, passado com futuro” 9.

http://g1.globo.com/videos/minas-gerais/t/todos-os-videos/v/designers-de-juiz-de-fora-mg-sao-finalistas-em-concurso-do-sebrae/2147754/


1 Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela UFJF . Ex-bolsista de Iniciação Científica. Mestranda do PPGCOM/UFJF. Integrante dos projetos de pesquisa “Cidade e memória: a identidade urbana pela narrativa audiovisual”. Gestora de marketing e produtora de moda da EntreNós. Email: raruzakeara@yahoo.com.br
2Graduada em Artes Visuais pela UFJF- Ex- bolsista de extensão da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares de UFJF. Pós graduada em Engenharia de Produção pela UFJF. Consultora na área de desenvolvimento de projetos de produtos personalizados e em projeto de serviço. Email:wanessabittar@yahoo.com.br
3 BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 27 ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
4 SANTAELLA, Lucia. Cultura e artes do pós-humano. São Paulo: Paulus, 2003 p.245.
5 Os rastros nos apresentam caminhos percorridos por outros homens em outros tempos. Homens que construíram suas histórias de vida, logo, deixando suas marcas. Os rastros são, antes de mais nada, signos de representação. BABOSA, Marialva Carlos. Meios de Comunicação e história: um universo de possíveis. In: Mídia e Memória A produção de sentidos nos meios de comunicação. Mauad X. Rio de Janeiro, 2007, p. 15-34. Org: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; FERREIRA, Lúcia Maria Alves.
6 PRYSTHON, Angela; CUNHA, Paulo (orgs.). Ecos urbanos: a cidade e suas articulações midiáticas. Porto Alegre: Sulina, 2008, p.117. 7 Disponível no site: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/07/projeto-de-sp-visa-reutilizar-retalhos-de-tecido-para-evitar-desperdicio.html. Data de acesso 15/07/2012.
7 Disponível no site: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/07/projeto-de-sp-visa-reutilizar-retalhos-de-tecido-para-evitar-desperdicio.html. Data de acesso 15/07/2012.

8 O projeto Tratamento de superfície de crochê com resíduos é um dos classificados do Prêmio Sebrae Minas de Design 2012 na categoria resíduos. O nome dos classificados está disponível: http://www.premiosebraeminasdesign.com.br/finaslitas-e-classificados-2012. E no Catálogo do SEBRAE/ Se funciona é design.
9 NETO, Eduardo Barroso. Design, identidade cultural e artesanato. Disponível em htpp://www.eduardobarroso.com.br/artigos.htm. Data de acesso em 8 de set. 2010.