A
nossa memória é seletiva. Por uma série de fatores físicos e mentais, não
lembramos de tudo o que nos aconteceu, mas somente de uma parcela dos
acontecimentos. Até para nossa própria sobrevivência, não podemos lembrar de
tudo, senão seríamos como o personagem Funes, o memorioso, de Borges[1],
que ao se lembrar de tudo, vive para lembrar e não para viver. Lembrar é também uma forma de esquecer. Primo
Levi[2],
em sua obra “Os Afogados e os sobreviventes” aponta que uma das formas para
esquecer as atrocidades cometidas pelos nazistas nos campos de extermínio é
lembrar e relatar o que se passou e desta forma evitar que novas experiências
de extermínio acontecem. Primo Levi alerta para o desejo do esquecimento de
muitos dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas, no que ele
denomina de memória da ofensa. No entanto, ele afirma que esta memória está
sempre ancorada no contexto dos fatos e não é cópia fiel dos mesmos, pois “a
memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falaz”. Nesse caso, a memória
de algum fato é sempre incompleta.
No
entanto, sabemos que uma coisa é uma falha na memória, seja ela pessoal ou
coletiva, e outra coisa é uma tentativa de reescrita da história, de forma a
distorcer os fatos acontecidos. Levi relata a preocupação dos nazistas em
destruir as câmaras de gás e os fornos crematórios no outono de 1944 como forma
de apagar a memória, destruindo as provas do extermínio. Segundo Levi, essa
“guerra contra a memória” promovida pelo Terceiro Reich foi perdida não somente
pelos vestígios dos campos que restaram, mas também graças aos testemunhos dos
sobreviventes. Conforme nos alerta Todorov[3],
essa atitude também está presente na destruição de monumentos astecas que os
espanhóis promoveram nas colônias latino-americanas como forma de suprimir a
grandeza dos vencidos. A essa atitude Todorov dá o nome de supressão da
memória. Ou seja, tentativa de suprimir a memória do que aconteceu como forma
de apresentar outra realidade. Nesse caso, a memória é sempre vista como um
inimigo nos regimes totalitários, nos quais o esquecimento é sempre
providencial.
Presenciamos
um exemplo de uma tentativa de reescrita da história no Brasil muito
recentemente. Em julho deste ano, fui ao Rio de Janeiro para uma reunião com
minha orientadora e para apresentar um paper
no Encontro Nacional de História Oral. Entre um compromisso e outro almocei num
restaurante do centro do Rio. Ao chegar ao restaurante verifiquei que estava
passando uma matéria no Jornal Hoje sobre a morte de um bispo. O som da TV
estava desligado e na tela apareciam as legendas do closed caption. Ao ver a matéria a partir da metade, pensei em se
tratar de algum bispo ligado aos movimentos eclesiais de base ou à Teologia da
Libertação, devido ao conteúdo apresentado pelo jornalista. Qual foi a minha
surpresa ao descobrir que se tratava da morte do Cardel Dom Eugênio Salles.
Fiquei um pouco preocupada, pensando que estava com problemas de memória, pois
me lembrava de histórias sobre o Cardeal, ligando-o aos militares e não aos opositores
do regime militar, tal como foi retratado na matéria. Fui salva pelo professor
José Bessa Freire[4] que publicou uma crônica
sobre o assunto, desnudando a tentativa de transformar o Cardeal em um bispo de
esquerda. Em sua crônica “Um Cardeal sem passado”, prof. Bessa traça um
paralelo sobre o episódio da morte de Dom Eugênio Salles e filme “Uma cidade
sem passado” de Michael Verhoven sobre uma cidade alemã que esconde um passado nazista, transformando os antigos cúmplices da opressão em heróis da resistência. Bessa aponta “como o poder manipula as versões sobre a história, promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa despudoradamente novas lembranças e usa a memória, assim construída, como um instrumento de controle e coerção”. Ao ler a crônica do professor Bessa, fiquei ao mesmo tempo aliviada e preocupada. Aliviada por saber que não estou com problemas de memória e preocupada em ver que mesmo nos dias de hoje, a reescrita da história continuam acontecendo e, por isso, é preciso sempre estar alerta para esse tipo de distorção da memória.
Rosali Henriques é mestre em Museologia, doutoranda em Memória Social pela Unirio - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
[1] No conto ‘Funes, o memorioso’, o escritor argentino
Jorge Luís Borges conta a história de um homem, que após uma queda de um
cavalo passa a lembrar de todos os detalhes da sua vida, sem esquecer
nenhum pormenor. Esta situação leva a um esgotamento de Funes, pois ele
não consegue descansar a memória. BORGES, Jorge Luis. Funes, o
memorioso. In: BORGES. Obras completas, v. 1. São Paulo: Globo, 2000.
Ficções, p. 539-546.
[2] LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004
[3] TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Madrid: Paidós, 2000.
[4] BESSA FREIRE, José. Um cardeal sem passado. http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=989. Leia também crônica de Hildegard Angel sobre o assunto: http://noticias.r7.com/blogs/hildegard-angel/2012/07/10/dom-eugenio-salles-otima-relacao-com-os-jornais-antes-da-morte-e-depois-dela/
[2] LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004
[3] TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Madrid: Paidós, 2000.
[4] BESSA FREIRE, José. Um cardeal sem passado. http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=989. Leia também crônica de Hildegard Angel sobre o assunto: http://noticias.r7.com/blogs/hildegard-angel/2012/07/10/dom-eugenio-salles-otima-relacao-com-os-jornais-antes-da-morte-e-depois-dela/
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