A cidade ocupada e modificada
pelas intervenções humanas e constituída também por ordens imaginárias revela
as figurações das identidades que demarcam as ruas e também os rompimentos que
introduzem a desordem das experiências e dos relatos.
Intervenções desencadeadoras de ações
intencionais que transformam homens e mulheres em personagens, sujeitos que se
apropriam dos espaços públicos – com eles interagindo ora de forma harmônica e
equilibrada, ora de maneira conflituosa e insidiosa, na tentativa de converter
os espaços em “lugares meus” (Borelli e Rocha, apud Pryston, 2005).
O
tecido da cidade é produzido pelos movimentos humanos, através dos fatos
sociais, territoriais e culturais.
Trata-se, de certa forma, de uma cidade
cindida em cenários, assim como, cindida está a sociedade da qual ela é parte
constitutiva; sociedade transformada e distanciada da ideia clássica que
pressupõe uma “cena única e nacional”, em que as comunidades se vinculavam “a
um território, a uma língua e a certas tradições” (Sarlo, apud Pryston, 2003,
p.56-57)
Assim como se alteram as
sociedades e as subjetividades, as cidades se transfiguram. Nessa cidade
disseminada vive-se a tensão. “Hoje imaginamos o que significa ser sujeitos não
apenas de nossa cultura de origem, mas também de uma variedade de repertórios
simbólicos e modelos de comportamento. Podemos cruzá-los e combiná-los”
(Canclini, apud Pryston, 2004, p.161). E nesse sentido desvendar como a cidade
é imaginada por seus habitantes é perguntar-se sobre qual o sentido que eles
atribuem à cidade em que vivem a demanda
“O sentido da cidade se constitui no que
a cidade dá e no que não dá, no que os sujeitos podem fazer com sua vida em
meio às determinações do habitat e o que imaginam sobre si e sobre os outros
para suturar as falhas, as faltas, os desenganos com que as estruturas e
interações urbanas respondem a suas necessidades e desejos (Canclini, 1995,
p.91).
Renato
Gomes comenta na obra “Todas as cidades, a cidade” sobre a dificuldade de entender
o código da cidade, devido a sua constante transformação. Ele define a cidade
como “linguagem dobrada, em busca de orientação”. No livro “Espécies de
espaço”, o autor reflete sobre a cidade como metrópole, um fenômeno da
modernidade em que “a arena cultural indica um campo de batalha simbólico (das
artes e das indústrias da cultura) que, na sua polifonia, faz da cidade o palco
de uma guerra de relatos” (GOMES, 2008, p.181).
E
nesse campo de disputas, dentro ou fora da lei a cidade é feita por pessoas que
consomem e, quem fica a margem, é considerado um monstro. Rubem Fonseca no
conto “O outro”, por exemplo, não pensa na sociedade polarizada de classes,
mostrando como os favorecidos e os desfavorecidos criminalizam a cidade. O
autor fala de um lugar de culpa com as ambigüidades que produzem a violência. O
intelectual tem uma crise por militar pelos pobres e não pertencer à classe
deles. Além disso, reflete sobre a invisibilidade existente nos grandes
centros, tema tratado em “A Ralé Brasileira” por Jessé Souza.
O ponto principal para que essa ideologia
funcione é conseguir separar o indivíduo da sociedade. Nesse sentido, toda
determinação social que constrói indivíduos fadados ao sucesso ou ao fracasso
tem que ser cuidadosamente silenciada. É isso 'que permite que se possa culpar
os pobres pelo próprio fracasso. É também o mesmo fato que faz com que todo o
processo familiar, privado, invisível e silencioso, que incute no pequeno
privilegiado as predisposições e a "economia moral" — o conjunto de
predisposições que explicam o comportamento prático de cada um de nós — que
leva ao sucesso — disciplina, autocontrole, habilidades sociais etc. —, possa
ser "esquecido". O "esquecimento" do social no individual é
o que permite a celebração do mérito individual, que em última análise
justifica e legitima todo tipo de privilégio em condições modernas. É esse
mesmo "esquecimento", por outro lado, que permite atribuir
"culpa" individual àqueles "azarados" que nasceram em
famílias erradas, as quais só reproduzem, em sua imensa maioria, a própria
precariedade. Como, no entanto, o social, também nesse caso, é desvinculado do
individual, o indivíduo fracassado não é discriminado e humilhado
cotidianamente como mero "azarado", mas como alguém que, por preguiça,
inépcia ou maldade, por "culpa", portanto, "escolheu" o
fracasso (SOUZA, 2009, p.42).
A
cidade acaba por perder o seu sentido porque ela nega essa diferença, tentando
reduzir a alteridade para não produzir identidade. Para esmiuçarmos melhor tais
questões nos apoiamos nas reflexões de Janice Caiafa que parte do princípio de
que a marca das cidades é a circulação e a dispersão. A autora comenta que as
cidades crescem concentrando e misturando seus habitantes, criando problemas de
circulação. As formas como as diferentes cidades resolvem esses problemas é que
vão caracterizá-las e definir muito da vida social nesses contextos. “A
circulação tornava possível a ocupação do espaço público, produzindo a cidade
como grande centro que atraía uma população diversa em sua composição e que em
algum grau se misturava num espaço partilhado” (CAIAFA, 2007, p.31).
Caiafa também apresenta a sua
interpretação de Guattari sobre a função subjetiva da cidade. Tal função é
gerada pela falta de coletividade no meio ocupável com a inviabilidade de
territórios existenciais – éticos e estéticos.
Os encontros serão entre iguais e
conhecidos e vão se restringir a meios controlados e previstos, como por
exemplos os clubes, as igrejas, os grupos de auto-ajuda, ou ainda os contatos
virtuais por televisão ou computador. Produz-se uma subjetividade
constantemente à mercê das semióticas modelizadoras dominantes e, portanto, em
consonância com a subjetividade capitalista. A evitação da alteridade é fatal
para a potência criadora da subjetividade (Caiafa, 2007, p.39).
Para Caiafa (2007) o desejo de
vínculo com a cidade que não é apenas consumida e se dá pela capacidade de
transformação, criação de novos caminhos subjetivos. Guattari afirma que as
“engrenagens urbanas” nos interpelam, ativando afetos, modelizando focos subjetivos. As cidades se definem em grande parte pelos
processos subjetivos que deflagram. “A aventura própria das cidades envolve
precisamente a produção de heterogeneidade, quando a cidade chama à
exterioridade, dispersa os focos de identidade e as recorrências do familiar
[...]” (Caiafa, 2007, p.39).
E, portanto, com a privatização
dos subúrbios e a exclusão, é na circulação urbana que Caiafa (2007) encontra a
solução enquanto grande operador de alteridade, heterogeneidade e segregação
para composições subjetivas singulares.
E o setor público tem um papel definitivo, porque pode ser produtor de
espaços coletivos, em que possa “desatar o laço que ata a cidade à empresa,
figura central das mutações contemporâneas do capitalismo” (Caiafa, 2007,
p.40).
Rafaella Prata Rabello:
Jornalista pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora e Graduanda do 6º
período de Letras na Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista Pibic/CNPq
no projeto Cidade e memória: a construção da identidade urbana pela narrativa
audiovisual.
Por Rafaella Prata.
Referências bibliográficas:
CAIAFA, Janice. Aventura das cidades: ensaios e
etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura
e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
GOMES, Renato Cordeiro;
MARGATO, Izabel (org.). Espécies de
espaço: territorialidades, literatura, mídia. Belo Horizonte, Ed. UFMG,
2008.
PRYSTON, Angela; CUNHA, Paulo
(orgs). Ecos urbanos: a cidade e
suas articulações midiáticas. Porto Alegre: Sulina, 2008.
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: Quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
p. 15-71.
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