segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A cidade e suas perspectivas civilizatórias


A cidade ocupada e modificada pelas intervenções humanas e constituída também por ordens imaginárias revela as figurações das identidades que demarcam as ruas e também os rompimentos que introduzem a desordem das experiências e dos relatos.
Intervenções desencadeadoras de ações intencionais que transformam homens e mulheres em personagens, sujeitos que se apropriam dos espaços públicos – com eles interagindo ora de forma harmônica e equilibrada, ora de maneira conflituosa e insidiosa, na tentativa de converter os espaços em “lugares meus” (Borelli e Rocha, apud Pryston, 2005).

O tecido da cidade é produzido pelos movimentos humanos, através dos fatos sociais, territoriais e culturais.

Trata-se, de certa forma, de uma cidade cindida em cenários, assim como, cindida está a sociedade da qual ela é parte constitutiva; sociedade transformada e distanciada da ideia clássica que pressupõe uma “cena única e nacional”, em que as comunidades se vinculavam “a um território, a uma língua e a certas tradições” (Sarlo, apud Pryston, 2003, p.56-57)

Assim como se alteram as sociedades e as subjetividades, as cidades se transfiguram. Nessa cidade disseminada vive-se a tensão. “Hoje imaginamos o que significa ser sujeitos não apenas de nossa cultura de origem, mas também de uma variedade de repertórios simbólicos e modelos de comportamento. Podemos cruzá-los e combiná-los” (Canclini, apud Pryston, 2004, p.161). E nesse sentido desvendar como a cidade é imaginada por seus habitantes é perguntar-se sobre qual o sentido que eles atribuem à cidade em que vivem a demanda
“O sentido da cidade se constitui no que a cidade dá e no que não dá, no que os sujeitos podem fazer com sua vida em meio às determinações do habitat e o que imaginam sobre si e sobre os outros para suturar as falhas, as faltas, os desenganos com que as estruturas e interações urbanas respondem a suas necessidades e desejos (Canclini, 1995, p.91).

Renato Gomes comenta na obra “Todas as cidades, a cidade” sobre a dificuldade de entender o código da cidade, devido a sua constante transformação. Ele define a cidade como “linguagem dobrada, em busca de orientação”. No livro “Espécies de espaço”, o autor reflete sobre a cidade como metrópole, um fenômeno da modernidade em que “a arena cultural indica um campo de batalha simbólico (das artes e das indústrias da cultura) que, na sua polifonia, faz da cidade o palco de uma guerra de relatos” (GOMES, 2008, p.181).

E nesse campo de disputas, dentro ou fora da lei a cidade é feita por pessoas que consomem e, quem fica a margem, é considerado um monstro. Rubem Fonseca no conto “O outro”, por exemplo, não pensa na sociedade polarizada de classes, mostrando como os favorecidos e os desfavorecidos criminalizam a cidade. O autor fala de um lugar de culpa com as ambigüidades que produzem a violência. O intelectual tem uma crise por militar pelos pobres e não pertencer à classe deles. Além disso, reflete sobre a invisibilidade existente nos grandes centros, tema tratado em “A Ralé Brasileira” por Jessé Souza.

O ponto principal para que essa ideologia funcione é conseguir separar o indivíduo da sociedade. Nesse sentido, toda deter­minação social que constrói indivíduos fadados ao sucesso ou ao fracasso tem que ser cuidadosamente silenciada. É isso 'que permite que se possa culpar os pobres pelo próprio fracasso. É também o mesmo fato que faz com que todo o processo familiar, privado, invisível e silencioso, que incute no pequeno privilegiado as predisposições e a "economia moral" — o conjunto de predis­posições que explicam o comportamento prático de cada um de nós — que leva ao sucesso — disciplina, autocontrole, habilidades sociais etc. —, possa ser "esquecido". O "esquecimento" do social no individual é o que permite a celebração do mérito individual, que em última análise justifica e legitima todo tipo de privilégio em condições modernas. É esse mesmo "esqueci­mento", por outro lado, que permite atribuir "culpa" individual àqueles "azarados" que nasceram em famílias erradas, as quais só reproduzem, em sua imensa maioria, a própria precariedade. Como, no entanto, o social, também nesse caso, é desvinculado do individual, o indivíduo fracassado não é discriminado e humilhado cotidianamente como mero "azarado", mas como alguém que, por preguiça, inépcia ou maldade, por "culpa", portanto, "escolheu" o fracasso (SOUZA, 2009, p.42). 

A cidade acaba por perder o seu sentido porque ela nega essa diferença, tentando reduzir a alteridade para não produzir identidade. Para esmiuçarmos melhor tais questões nos apoiamos nas reflexões de Janice Caiafa que parte do princípio de que a marca das cidades é a circulação e a dispersão. A autora comenta que as cidades crescem concentrando e misturando seus habitantes, criando problemas de circulação. As formas como as diferentes cidades resolvem esses problemas é que vão caracterizá-las e definir muito da vida social nesses contextos. “A circulação tornava possível a ocupação do espaço público, produzindo a cidade como grande centro que atraía uma população diversa em sua composição e que em algum grau se misturava num espaço partilhado” (CAIAFA, 2007, p.31).

Caiafa também apresenta a sua interpretação de Guattari sobre a função subjetiva da cidade. Tal função é gerada pela falta de coletividade no meio ocupável com a inviabilidade de territórios existenciais – éticos e estéticos.
Os encontros serão entre iguais e conhecidos e vão se restringir a meios controlados e previstos, como por exemplos os clubes, as igrejas, os grupos de auto-ajuda, ou ainda os contatos virtuais por televisão ou computador. Produz-se uma subjetividade constantemente à mercê das semióticas modelizadoras dominantes e, portanto, em consonância com a subjetividade capitalista. A evitação da alteridade é fatal para a potência criadora da subjetividade (Caiafa, 2007, p.39).

Para Caiafa (2007) o desejo de vínculo com a cidade que não é apenas consumida e se dá pela capacidade de transformação, criação de novos caminhos subjetivos. Guattari afirma que as “engrenagens urbanas” nos interpelam, ativando afetos, modelizando focos subjetivos.  As cidades se definem em grande parte pelos processos subjetivos que deflagram. “A aventura própria das cidades envolve precisamente a produção de heterogeneidade, quando a cidade chama à exterioridade, dispersa os focos de identidade e as recorrências do familiar [...]” (Caiafa, 2007, p.39).

E, portanto, com a privatização dos subúrbios e a exclusão, é na circulação urbana que Caiafa (2007) encontra a solução enquanto grande operador de alteridade, heterogeneidade e segregação para composições subjetivas singulares.  E o setor público tem um papel definitivo, porque pode ser produtor de espaços coletivos, em que possa “desatar o laço que ata a cidade à empresa, figura central das mutações contemporâneas do capitalismo” (Caiafa, 2007, p.40).
Rafaella Prata Rabello: Jornalista pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora e Graduanda do 6º período de Letras na Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista Pibic/CNPq no projeto Cidade e memória: a construção da identidade urbana pela narrativa audiovisual.

Por Rafaella Prata.


Referências bibliográficas: 
CAIAFA, Janice. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
GOMES, Renato Cordeiro; MARGATO, Izabel (org.). Espécies de espaço: territorialidades, literatura, mídia. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2008.
PRYSTON, Angela; CUNHA, Paulo (orgs). Ecos urbanos: a cidade e suas articulações midiáticas. Porto Alegre: Sulina, 2008.
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: Quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 15-71.

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